terça-feira, 12 de novembro de 2013

Agora que tudo o que escrevo é para você, tudo o que cito no meu mural do facebook, tudo o que cantarolo, agora acordo como de costume quando a aeromoça pergunta a um passageiro uma poltrona à minha frente se ele quer água ou suco de pêssego. Eu sempre durmo no avião, mas nunca perco a comida ou a bebida que oferecem. Acordo com a pergunta da aeromoça e, enquanto espero que ela chegue a mim, olho pela janela e as nuvens abaixo da aeronave estão bonitas. São várias nuvens pequenas e há espaços entre elas que deixam ver o verde lá embaixo e fios marrom-avermelhados de estradas de terra. Agora que tudo o que escrevo é para você (mas não, não tudo o que cantarolo, porque cantarolo muito, e são coisas aleatórias que vêm à minha cabeça sem motivo), agora que fico esperando que você curta as coisas que cito no mural do facebook para eu saber que viu e entendeu que são para você, agora olho as nuvens e penso que elas não formam seu rosto. "Biscoito salgado, rosquinha de leite, cookie integral ou bala?". Não estou com fome nenhuma, tomei café da manhã no hotel há pouco tempo, peço um biscoito salgado e uma bala pensando que posso querer comer depois, e quando recebo o pacotinho de balas com formato de avião penso que as guardarei para você. Me arrependo de não ter pedido rosquinhas de leite. Agora o avião já está sobre o mar, e na massa azul eu não vejo seu rosto, mas lembro que você quer ir à praia e lembro que eu quero estar junto. A voz avisa que estamos em procedimento de descida. Aqui as nuvens são maiores e mais concentradas e já começam a estar acima do avião. E o mar tem manchas mais claras. E, agora, muitos navios cargueiros. E agora só branco, branco, entramos em uma nuvem. Saímos de novo, a cidade de Salvador já está aqui embaixo e o avião já treme e é só eu pensar nessa palavra que me lembro do seu tremor, a imagem que não me abandona. Tocamos o chão. A aeromoça deseja a todos uma tarde azul, porque esse é o nome da companhia aérea.

(04/09/2013)

quarta-feira, 14 de agosto de 2013



(há pouco, ouvi sua voz pela primeira vez, em uma conversa de vinte e cinco segundos; sua voz)

foto de Bill Brandt

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Eu me sentei no Cinusp depois de vários anos sem ir lá. O filme começou. O som levemente chiado, a projeção um pouco instável. Mas isso não atrapalhava a relação com o que estava se passando ali, naquele momento, me parece. E em muito pouco tempo me invadiu uma sensação antiga e sem nome de quando eu via filmes naquela sala em 1999 - a mesma sensação que vinha de antes, de quando eu via filmes no Cine Metrópolis em Vitória, ou no Cine-Teatro Garoto em Vila Velha, em 94, 95, 96, 97... "O que se move", com sua cópia já um pouco mastigada por projetores de festivais, pareceu para mim, por um instante, um filme mais velho, talvez daqueles anos, talvez anterior, e que eu estava indo ver pela primeira vez. Essa a sensação reencontrada. Que eu não sei como descrever. Ao final da projeção, na conversa com o público - eu ainda sem entender o que estava sentindo - as pessoas foram falando de alguns elementos que perceberam no filme e nos quais eu nunca tinha pensado diretamente para o filme, mas que eu fui reconhecendo claramente como coisas minhas (referências, jeito de olhar, pulsões). Me senti desnudado ali, e foi uma sensação estranha, incômoda e boa. Fiquei pensando nisso quando saí de lá, segui pensando nisso até agora. E há pouco recebi uma mensagem de um rapaz que estava na sessão e que escreveu uma das coisas mais bonitas que eu já recebi, falando sobre como ele ficou incomodado quando viu o filme pela primeira vez numa sessão em outubro do ano passado, mas como o filme seguiu com ele por dias, insistente ("sentia o meu corpo estranho, meu peito apertava e isso me confundia, uma vez que eu não sabia se tudo aquilo era uma sensação boa ou ruim"). E isso foi fazendo ele mudar seu olhar sobre as possibilidades do cinema, segundo suas palavras. Achei tão generoso ele escrever esse relato para mim. É bom dar a sorte de cruzar com essas pessoas. E ir dormir com a cabeça e o peito alimentados e inquietos.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Ay, cómo lloran y lloran

(Esta canção persegue minha memória desde que eu a ouvi pela primeira vez, aos quatorze anos - e achei tão triste e bonita. Repetia e repetia e repetia no pensamento só o primeiro verso desde então, porque era o único de que me lembrava. E aquela tristeza em que me reconheci ficou guardada nesse trecho mínimo de canção por mais de dezessete anos. Hoje, pela primeira vez, voltei a ouvi-la. Nunca a tinha procurado. Um poema infantil de Lorca musicado por Paco Ibáñez, descobri agora. E acho que não a perco mais.)


http://youtu.be/6VMxeqfwUro

terça-feira, 1 de maio de 2012

O que se move (esboço a partir do filme)

terça-feira, 31 de janeiro de 2012



Último dia de janeiro de 2012. Último dia de mixagem do som de "O que se move".

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Não me lembro da lenta e progressiva despedida, quando se anda pelas terras, o labirinto doloroso, a alegria, quando se vai pelas terras, e nos despedimos, primeiro de um corpo, depois de um sítio, depois de um odor, uma luz, uma voz, os arrabaldes, os sinais, as palavras, as temperaturas.
Não me lembro de quando se vai deixando.



(Herberto Helder)

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Trinta anos esta noite.

domingo, 26 de junho de 2011

o que se move

sexta-feira, 6 de maio de 2011


Irene: O quarto estava muito escuro, só vinha um bafo de luz do banheiro. Ele se virou de bruços, atravessado na cama, com a cabeça virada para o lado em que eu estava. Eu me agachei, cheguei muito perto do rosto dele, dei um beijo, disse tchau. Com uma tristeza muito grande, eu não esperava ficar triste daquele jeito. Ele me perguntou: “O que está acontecendo?” Eu não respondi. Me fez tão bem ele perguntar aquilo. Eu fiquei olhando pra ele um tempo, com a pergunta ecoando na minha cabeça. O que está acontecendo. 

quarta-feira, 20 de abril de 2011

quinta-feira, 31 de março de 2011

Vi há pouco o filme sul-coreano "Poesia", de Lee Chang-Dong. Gostei muito. As coisas são palpáveis. Uma maçã é uma maçã. A alma é o corpo.



Maçã
(Manuel Bandeira)

Por um lado te vejo como um seio murcho
Pelo outro como um ventre de cujo umbigo pende ainda o cordão placentário
És vermelha como o amor divino

Dentro de ti em pequenas pevides
Palpita a vida prodigiosa
Infinitamente

E quedas tão simples
Ao lado de um talher
Num quarto pobre de hotel

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011


Uma imagem
               para Gilda Nomacce


Oito de fevereiro de 2011
são quase oito da manhã
ou talvez há alguns minutos já tenha passado das oito

estou indo embora de Amsterdam dentro de um trem
que leva ao aeroporto
o dia está claro
alguns pedaços da cidade ainda se movem
pela janela do meu vagão
ou
a janela do meu vagão ainda se move
pela cidade
e quando vejo algo
é sempre o pedaço de algo

penso em você
tento formar uma imagem sua que faça parte disto
as árvores sem folhas, os telhados, este trem e a maneira como se move
o vento muito forte que me empurrou alguns dias atrás
o frio que não sinto agora
o quarto pequeno em que Anne Frank dormia
com recortes colados na parede
a marca de um recorte que se descolou há mais de sessenta anos
uma escada, uma janela refletida em um espelho
com um pedaço de céu
a água de um canal à noite
a tinta espessa de um quadro
tijolos
luz
penso em você
e sua imagem me escapa
ainda este trem
oito da manhã
alguns minutos
um avião risca o céu com a fumaça que deixa atrás de si
uma linha branca, luminosa
estende-se aos poucos na claridade
à medida que o avião segue descendo
descendo
quase verticalmente:
um talho preciso e difuso
que rasga o que vejo
que cria a hipótese de um espaço
entre o céu e o chão
sendo ainda céu e chão a um só tempo

o trem entra em um túnel
eu anoto: o céu está sendo rasgado
e então entendo:
você é esse risco que rompe a paisagem

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Quando eu digo parece outra coisa... (pausa) Eu queria que existisse um jeito de falar disso. (pausa) Ou melhor, existe, claro. O que se diz é o que se diz. Nós somos o que parecemos, não é isso? Nossos corpos, nosso rosto, nossa língua dentro da boca, o joelho, o pé, nada está mentindo nem escondendo alguma coisa, nenhuma palavra é um poço em que se guarda o que não é dito, uma palavra é uma forma maciça.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Antes que o ano acabe.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Para este mês não passar.

(Eu menti. Já eram as primeiras horas do dia primeiro de dezembro quando escrevi isso, mas mudei o horário da postagem para que novembro existisse aqui.)

domingo, 31 de outubro de 2010

Há pequenas impressões finas como um cabelo e que, uma vez desfeitas na nossa mente, não sabemos aonde elas nos podem levar. Hibernam, por assim dizer, nalgum circuito da memória e um dia saltam para fora, como se acabassem de ser recebidas. Só que, por efeito desse período de gestação profunda, alimentada ao calor do sangue e das aquisições da experiência temperada de cálcio e de ferro e de nitratos, elas aparecem já no estado adulto e prontas a procriar. Porque as memórias procriam como se fossem pessoas vivas. Acreditem que sim e passamos ao capítulo seguinte. (Agustina Bessa-Luís, "Antes do degelo" - anotado em Lisboa em 17/12/09)

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

No início de setembro, Maria Eugênia fez 30 anos.

No fim de setembro, conheci Irene.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Anteontem, dia 28 de agosto, Cida Moreira cantou canções de Chico Buarque no auditório do Ibirapuera e eu estava lá junto com Maria Eugênia, de pé, vendo, ouvindo. Enquanto as músicas se seguiam, e eu escutava, e olhava para Maria de quando em quando, percebi o quanto fazia sentido para mim estar ali, naquele momento, imergindo sem nenhum esforço em muitas e muitas camadas de memória, urgência e afeto que habitam esses três nomes: Cida Moreira, Chico Buarque, Maria Eugênia. 

sábado, 31 de julho de 2010

Sylvia Plath em Madri (1932 - 1963)

7 de julho de mil novecentos
e cinqüenta e seis. Ted Hughes e Sylvia Plath ainda dormem.
É uma noite quente.

....................................O céu
põe em sua pele pequenas mãos azuis.

....................................................................E ela,
longe dali,
vê um bosque,
 

............................ouve as árvores que agitam
a luz

...............e o vento feito de leões vazios.

Depois
 

..................abre os olhos,
vai à varanda
olha algo que há neste perfeito
escuro de verão,
algo que pertence à dor que a espera,
o inverno de dentro de sete anos,

..........................................................a casa
número 123 de Fitzroy Road,
os dias
de chuva,

................a cidade
parada sob a água como um corpo
a que lentamente se acercam os cirurgiões.

Penso em tudo isso enquanto te escrevo outro poema;
enquanto digo:
Você é Patti Smith olhando para uma auto-estrada.
Eu sou o primeiro dia de Lorca em Nova Iorque
Você é Sylvia Plath sentada em um terraço.
Você é Robert Lowell sonhando com um rio.

Mas torno a parar.

....................................Fecho os olhos
e a imagino: observa
as ruas de Madri; ainda lhe falta
saber por quê, mas já sente o medo.
É estranho: ainda
são felizes e jovens,
 

................................esperam
aprender algo que ninguém lhes possa ensinar;
mas, de alguma forma, Sylvia já pode vê-lo,
ainda faltam sete anos,

.......................................mas já pode vê-lo:
Ted se foi. Está muito sozinha. E talvez pense: lute
por tudo o que lhe converta em quem você acha que é.

Mas o dia está muito frio.

.............................................E a chuva golpeia
a velha casa onde viveu Yeats; onde ela
passa o inverno de mil novecentos
e sessenta e três, o mais terrível dos últimos
15 anos. Está sozinha. Ainda não tem
calefação, a luz se vai, o telefone
não funciona.

.......................E um dia
escreve: “Sou eu mesma. Não é o bastante.”
E outro dia, volta a olhar a neve
sobre Fitzroy Road;
 

..................................abre o gás, 
........................................................escuta
grandes árvores que parecem homens perdidos.

Agora, volto a pensar em você e em mim;
me pergunto
que parte de nós se parece com essa história;
me pergunto

.....................se deveria começar
meu poema: eu sou Ted Hughes queimando
os diários de Sylvia Plath.

...........................................Depois
espero até que tudo volte a ocupar seu lugar,
se refaça,
se feche
muito lentamente, como a água de um rio
atrás de um nadador.
 

.......................................E logo penso:
— Este poema é Sylvia Plath da mesma forma
que chamamos de vento a uma árvore que se move.
Mas escrevo:
Eu sou você e eu correndo pelas ruas de Londres.
Você é Virgínia Woolf em uma casa vazia.

(Benjamín Prado - tradução de Marília Garcia)

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Antes que o dia termine. Antes que o mês termine.



o que se passou foi atribuído a devaneios inconsequentes

o que chegou aconteceu só por si e incendiou-me

ainda assim não consigo explicar o que na verdade me põe tão contente hoje

como não consigo explicar o calor inabitual

do meu coração invulgar bombeando prosaicamente o sangue

de alguém que amei alguém e agora o meu amor é outro


(Frank O'Hara traduzido por José Alberto Oliveira)

terça-feira, 25 de maio de 2010

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Nossa, como gosto disto.


segunda-feira, 5 de abril de 2010

Hoje, Marco e Ju foram para Paulínia para começar a filmar seu primeiro longa. Maria Eugênia foi para a Itália. Marina deve ter chegado cedo à Turquia. E Irene, a esta altura, já deve ter nascido. Aline me avisou com um recado no meio da tarde, que iluminou o dia. Ouço agora "quero ver Irene rir/ quero ver Irene dar sua risada", pensando em bons inícios para todos. Belos belos belos dias adiante.

sábado, 3 de abril de 2010

deixa a saudade em repouso
(em estação de águas)
tomando conta
desse objeto claro
e sem nome.
(Ana Cristina Cesar)

domingo, 21 de março de 2010

O Valmir Santos, que acompanha há anos com atenção, paixão e olhar crítico a produção teatral brasileira, especialmente a que passa por São Paulo, escreveu uma análise muito bonita de "O ruído branco da palavra noite". Escrevi no facebook: como me anima perceber em algumas pessoas a fundamental defesa da vocação da crítica como construção de pensamento. Sigo animado com isso, muito feliz com esse texto do Valmir e com o olhar sobre a peça ampliado a partir das leituras que ele fez.
http://www.questaodecritica.com.br/2010/03/dialogo-inventivo-com-a-tradicao/

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Em uma noite, a lua estava baixa e avermelhada e entramos na água. Na outra, andamos e falamos e ouvimos e nos sentamos perto da areia, mas não na areia, e falamos e ouvimos.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

(fotos de Nelson Kao)

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O Senhor Ferdinand observa. Observa com olhos grandes, com olhos pequenos, com um só olho, olhando pela janela da casa, para o jardim. Ele usa uma meia amarela e outra branca. Alguma coisa estranha está a acontecer, pensa. Olha fixamente - sem ver - para as árvores, enquanto enrola o cabelo com o dedo.
O vento rodopia na relva. Príncipes de papel pairam pelo jardim. Eles agitam-se ao vento. Há qualquer coisa errada, pensa o Senhor Ferdinand, pela centésima vez nesse dia. De meias, vai até à cozinha. Não, ele não tem fome. É outra coisa.
Um sentimento de tristeza invadiu-o. Transparente. Como gelo. É um sentimento como se... Como se alguma coisa que costumasse estar ali tivesse desaparecido. Perdi alguma coisa, pensa o Senhor Ferdinand. É isso. Desapareceu.
(início de "O Senhor Ferdinand", de Agnes Guldemont, com ilustrações de Carll Cneut e tradução de Maria João Archer de Carvalho - livro comprado por acaso em Lisboa, em uma livraria que estava para fechar e por isso tinha todo o seu estoque em promoção)

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

You Said Something
(PJ Harvey) On a rooftop in Brooklyn One in the morning Watching the lights flash In Manhattan I see five bridges The Empire State Building And you said something That I've never forgotten We lean against railings Describing the colours And the smells of our homelands Acting like lovers How did we get here? To this point of living? I held my breath And you said something And I am doing nothing wrong Riding in your car Your radio playing We sing up to the eighth floor A rooftop, Manhattan One in the morning When you said something That I've never forgotten When you said something That was really important

domingo, 27 de dezembro de 2009

Chiado
(com algo de PJ Harvey)
Quando nos encontramos
minhas mãos já se haviam aquecido um pouco
ou eu já havia deixado de pensar nelas
e no frio
ou agora, três dias depois,
deixei de pensar nas mãos
ou esqueci
Estávamos na rua
estava frio
mas começo pelo frio
porque sei que as temperaturas andam baixas
e não porque comece por aí a imagem
(quando ela começa
já estamos sentados no café
sem casacos)
Não, a ausência dos casacos
tampouco se nota
nesta imagem que habita seu nome quando o digo:
você levanta o olhar até mim
há uma tristeza
um silêncio curto
você sorri e baixa um pouco a cabeça
(Logo antes você me disse algo importante
algo que agora é importante
ou três dias atrás
e isso não está na imagem
mas havia suas palavras entre os nossos dedos)
Você levanta o olhar até mim
e os olhos param
há uma tristeza
um silêncio
que começa a durar sem incômodo
você sorri e baixa um pouco a cabeça
(Logo depois voltamos a falar
e isso não está na imagem
mas havia casacos pousados sobre uma mesa
outras mesas
frio, rua e mãos)
(Lisboa, 21-25 de dezembro de 2009)
Há pequenas impressões finas como um cabelo e que, uma vez desfeitas na nossa mente, não sabemos aonde elas nos podem levar. Hibernam, por assim dizer, nalgum circuito da memória e um dia saltam para fora, como se acabassem de ser recebidas. Só que, por efeito desse período de gestação profunda, alimentada ao calor do sangue e das aquisições da experiência temperada de cálcio e de ferro e de nitratos, elas aparecem já no estado adulto e prontas a procriar. Porque as memórias procriam como se fossem pessoas vivas. Acreditem que sim e passamos ao capítulo seguinte. (Augustina Bessa-Luís, "Antes do degelo". Anotado em Lisboa, no dia 17/12/09.)

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

24 de janeiro de 1953. Sábado de manhã, e me dedico ao velho exercício de apanhar o tempo entre os dedos, conforme ele passa, sempre passa e foge. (...) Tenho me dedicado à leitura dos versos vigorosos e densos de Gerard Manley Hopkins novamente: "Como manter - há um modo qualquer, qualquer um, haveria um meio, nos lugares desconhecidos, algum laço ou broche ou trança ou nó, grampo, trinco ou tranca ou chave para conter/ a beleza, para impedi-la, beleza, beleza, beleza... de desvanecer?". Sim, obcecada, como sempre, com o esvair do tempo!

(Sylvia Plath)

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

(Marc Chagall - Le Printemps)

terça-feira, 6 de outubro de 2009

filme

Seu rosto grande

de perfil

sobrancelhas

um olho

pálpebra

nariz

o vinco acima dos lábios

boca

um pedaço da orelha

cabelo

testa

todos os dias

assim que ligo o computador em que escrevo agora

no fundo de tela

tomando o retângulo da tela

seu rosto grande

Há ainda outro retângulo

em que estou com você

e nos movemos

respiramos

você me olha enquanto a luz morre em seu rosto

fala

ouve

agora

em São Paulo

três de outubro

meio-dia e dezenove

ontem depois das três da manhã em meu quarto

no Rio de Janeiro quase duas semanas atrás

no Recife daqui a vinte dias

Está sempre entardecendo

e já é noite

agora

em São Paulo

meio-dia e trinta e quatro

você acende a luz

caminha até mim

e nos movemos

respiramos

agora

em São Paulo

treze horas e onze minutos

sinto sua falta

(Primeiro poema que escrevo em quase dois anos. Se parece muito com outros poemas que estão aqui no blog, tem o mesmo verso final de um deles. Num primeiro momento, hesitei em aceitar isso; depois percebi que os poemas conversam, este aqui surgiu assim, querendo retomar algumas coisas. Então, eu o coloco no blog para que se dê a conversa.)

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Quando alguém parte, tem de deitar
ao mar o chapéu com as conchas
apanhadas ao longo do Verão,
e ir-se com o cabelo ao vento,
tem de lançar ao mar
a mesa que pôs para o seu amor,
tem de deitar ao mar
o resto de vinho que ficou no copo,
tem de dar o seu pão aos peixes
e misturar no mar uma gota de sangue,
tem de espetar bem a faca nas ondas
e afundar o sapato,
coração, âncora e cruz,
e ir-se com o cabelo ao vento!
Depois, regressará,
Quando?
Não perguntes.
(Ingeborg Bachmann, fragmento de "Canções de uma ilha", tradução de João Barrento e Judite Berkemeier)
setembro
setembro

sábado, 22 de agosto de 2009

("O menino japonês", primeira exibição. Algumas horas atrás.)

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

(14 de agosto de 2009)
Lindos e fluidos e claros esses onze meses.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

como se lembrar da sede?
chris marker pergunta
no filme "sans soleil"
talvez a sede só exista no presente
como se esquecer da sede (enquanto se tem sede)?

terça-feira, 28 de julho de 2009

ANA

(cantando)

Acordar, tentar dormir, comer

Esperar, tentar respirar, ouvir

Descansar, soluçar, tremer

Estender, aplainar, cerzir

E agora

Este amor insistente

Por tudo o que em você se move

Tudo o que em você se espalha

Pela ínfima duração do presente

Angélica me deu este caderno no dia 27 de junho de 2009. Estávamos sentados à mesa de uma padaria em São Paulo, bebíamos, comíamos e conversávamos depois de mais de um ano (mais de dois?) sem nos vermos. Nós dois comemos quindins ao final.
Ela me disse que gosta dos cadernos de 24 folhas, porque consegue começá-los e terminá-los. Eles são bons para o trabalho em um projeto só. Ou para fragmentos. E não intimidam. Ela me disse que escolheu um caderno sem pauta para que eu pudesse desenhar.
Estou muito surpreso agora. Parei para pensar na data de hoje para escrever aqui e só então me dei conta de que é 27 de julho. Como com a caderneta que Aline me deu, escrevo neste caderno pela primeira vez exatamente um mês depois de o ter recebido de presente.
Estou num estúdio de edição de som, no primeiro dia de pré-mixagem do som de "O menino japonês". Seguem-se os procedimentos técnicos iniciais, eu apenas observo e ouço. As frases dos diálogos se repetem muitas vezes, muitas vezes. Ou - Rômulo e eu, na tela e nas caixas de som, repetimos muitas vezes as mesmas palavras.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

(início)
Aline.
A primeira palavra aqui.
Aline me deu esta caderneta (fiquei agora em dúvida com a palavra caderneta - como chamar isto) no dia 20 de junho de 2009 em Florianópolis na casa dela e do Diego.
Dias azuis. 18, 19 e 20 de junho.
Aline e Elisa.
Aline tem uma caderneta cuja capa tem uma estampa igual à desta mas com cores diferentes.
Hoje é dia 20 de julho.
Estou no Rio de Janeiro, no primeiro ensaio de "A máquina de abraçar" (Mariana e Marina trabalham com Denise - agora comentam o trabalho com Malu - movimento, gesto, mãos, tempo).
Por que hoje estas primeiras palavras aqui?
O chão coberto de linóleo preto, as paredes pretas, cortinas pretas, cortina vermelha ao fundo. Atrizes, diretora, preparadora corporal, assistente de direção. Uma caixa preta. Um ensaio. O impulso de escrever (que vem de longe, de outros ensaios, da sala preta, de me sentar no chão e observar, ouvir).
E é dia 20 de julho, só me dei conta ao escrever aqui - um mês.
(hoje, dia 23, cheguei a São Paulo e uma carta enviada no dia 20 me esperava)

terça-feira, 14 de julho de 2009

PEDRO

Tá. E se a gente não se encontrar nunca mais a gente fica aqui vagando pelo parque até morrer.

TERESA

(sorrindo)

Não, até depois, junto com os espíritos. Ou os zumbis. Não sei quem habita essas árvores.

Pedro começa a andar. A cada passo, chuta de leve as folhas que estão sobre o chão, espalhando-as um pouco.

TERESA

Ah, Pedro, esqueci...

PEDRO

(sem olhar para trás)

Agora eu já comecei a andar, a gente só pode se falar de novo quando se encontrar por acaso no fim, não é isso?

Pedro anda mais um pouco. Olha os próprios pés enquanto espalha as folhas. Depois olha para trás.

Teresa não está mais lá.

domingo, 21 de junho de 2009

Florianópolis.
Os dias azuis.

sábado, 13 de junho de 2009

Três shows:
Juliano Gauche cantando Sérgio Sampaio (visto com meu pai)
Marcelo Jeneci e Laura Lavieri cantando Jeneci (visto com Marco, Clara e Maria Eugênia)
Cida Moreira (e alguns convidados) cantando Kurt Weill, Tom Waits, Chico Buarque, David Bowie, Amy Winehouse e uma porção de outras coisas (visto com Marina Tranjan)
Juliano Gauche e Marcelo Jeneci eu nunca tinha visto.  Muito bonito vê-los entregues, de jeitos muito diferentes, mas muito apaixonados pelo que cantam, sem medo nenhum de afundar na paixão. E gosto muito, muito das canções do Sérgio Sampaio. E gosto muito da Laura Lavieri (de vê-la cantar, de conversar com ela). 
Cida Moreira vi muitas vezes (eu a vejo sempre que tenho a chance, há mais de dez anos já). É sempre novo, é sempre espantoso para mim. E no meio de tudo, "Back to black", da Amy Winehouse, apropriada por Cida com um entendimento tão profundo, uma força, uma sinceridade. Acho que é disso que estou tentando falar, o que para mim junta esses três shows que vi no período de uma semana: a sinceridade (nenhum cinismo, nenhum verniz: lá estão as pontas, os rasgos, a doçura).

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Sixteen, Fifteen, Fourteen
(P J Harvey/ John Parish)
Erika is watching. Daniel is hiding. Erika is counting, "16,15,14,13,12,11,10,9"...... Erika is coming. The sun is setting the scene. In the garden it's starting to rain. The trees are trembling. Erika's repeating, "oh, oh, oh, oh"...... Erika is feeling something. Daniel is hiding. She's counting, "16,15,14,13,12,11,10,9,8,7,6,5,4"...... The sun is leaving the scene. It took a look and turned away. The trees are trembling. Erika's repeating, "oh, oh, oh, oh"...... There is no laughter in the garden.
(Comprei hoje o disco novo de P J Harvey e John Parish, "A Woman A Man Walked By". Ouvi esta canção e li esta letra pela primeira vez há menos de uma hora. Bastaram os dois primeiros versos para eu sentir que algo nela me dizia respeito. E dela eu não saí mais.) 

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Ná Ozzetti cantando "Boneca de piche" (Ary Barroso/ Luiz Iglésias) - ou, a alegria.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

(Adeus, Dragon Inn, filme de Tsai Ming-Liang que deu origem a "Bilheteira sentada. Projecionista fora de quadro.", outro poema da postagem de ontem.)
(Automat, de Hopper - o quadro que deu origem a "Mulher num quadro de Hopper", um dos poemas da postagem anterior.)

quarta-feira, 20 de maio de 2009

poemas antigos (todos anteriores a 2007, se não me engano)

Laranjeira

O idoso conseguia caminhar

e com seus próprios pés

seguiu até uma árvore do pátio de sua casa

na comunidade de Ostitán

no estado de Tabasco

 

Don Chaguito

aparentemente

trabalhava ainda no campo

 

com seus pés

seguiu até uma laranjeira de dois metros

do pátio de sua casa

na qual pendurou uma corda de náilon

para enforcar-se

 

tinha cento e quinze anos

 

deixou aí jogadas sua cadeira e sua bengala

*

Bilheteira sentada. Projecionista fora de quadro.

Não é preciso que ele diga nada

chove

não é preciso que ele mova trinta graus

a cabeça

e olhe para mim

deve haver goteiras novas

no saguão

me esperam

um pano de chão

um balde

um rodo

me levantarei já

uma de minhas pernas

rígida

as escadas

o talão de ingressos

as poltronas

a luz sobre a tela

a se enfiar

entre

as perfurações da tela

e a perfurar

meu rosto

não espero que

ele veja

 

mas a metade deste pão

cor-de-rosa

recheado

e cozido

que deixei aqui

sobre as latas empilhadas

quero que ele pegue

e coma

*

O animal, os animais

À beira da pista de

asfalto à beira do

gramado à beira do lago

uma ave bica

repetidas vezes

a lixeira de metal

que reflete sua imagem

(o bico acerta o bico refletido

e acerta o bico refletido

e acerta)

Muito maior que as três pombas

que ciscam sobre o gramado

a ave tem penas pretas

e amarelo-esbranquiçadas

que no topo da cabeça

contorcem-se numa crista

O rabo é descompensado:

uma pena quase solta

faz com que a figura inteira pese

para seu lado

Em desequilíbrio, portanto, para alguém

que a observe, a ave deixa a lixeira

e procura algo na grama

sem atentar ao barulho 

que ritmado ressurge 

Uma ave bica

repetidas vezes

a lixeira de metal

que reflete sua imagem

Vinda de nenhum lugar

tem as penas todas pretas e

um grito

o bico

amarelo vivo

de resto é igual à outra

em tamanho crista patas

mesmo que ainda preserve a simetria do rabo

Não são patos

nem cisnes

como tantos à beira do lago

Uma senhora as vê de longe

“olha lá o jacu, Manoela!”

mas de perto se desmente

“não sei que bicho é esse não”

Abandonada a lixeira

a ave de bico estridente

aproxima-se de seu par

e erram ambas pelo parque

até a próxima imagem

refletida no metal

essa imagem insistente

que repetidas vezes

sem urgência

acerta o bico da ave

que se põe à sua frente

*

Mulher num quadro de Hopper

                                    (roubado de Angélica Freitas)

Levarei um dia esta xícara até a boca

Calçarei de volta a luva

Roubarei uma banana da fruteira

sob meu casaco

ou sob meu chapéu

ninguém poderá notá-la

Um dia mastigarei

Ora, posso mover-me

Colocarei a fruteira sobre o aquecedor deste salão

e as frutas apodrecerão depressa

Ora, as horas correm

Descruzarei as pernas

Levantarei os olhos deste líquido escuro

Alguém descerá do carro lá fora

e esbarrará nesta cadeira vazia à minha frente

pedirá desculpa

Alguém dirá do reflexo das lâmpadas na vidraça

é um caminho sem fundo a se enfiar na noite

Levantarei um pouco o braço e os dedos presos na louça

Sentirei o gosto de café

um dia

esta xícara até a boca

*

Pegar com as mãos

(série de poemas)

um corpo

Você foi embora anteontem dentro do ônibus de viagem.

 

Para sair da rodoviária, ele

engatou uma ré muito lenta

 

fez uma manobra para a esquerda

 

e pôde então seguir reto

(seu rosto na janela foi junto).

 

A sua ausência restou, sentada em meu quarto.

 

Ela é um pouco incômoda.

 

Ela ocupa espaço.

 

Ela me faz companhia.

 

Ela dá trabalho.

 

 

Como um hipopótamo levado a passeio.

letra

Como um elefante.

Recebe esta

Pega

Há tempo já que

é matéria

esta palavra

Como um elefante.

Há tempo já

grafite

Esta palavra

Recebe esta

Pega

Como um instante.

carbono

um desconhecido

Esta caneca que você segura

o que quer que tenha dentro

o seu sorriso

a luz que vem da janela

deve ser manhã

vapor leite café

o seu sorriso

a claridade seu olho

o que quer que tenha dentro

seu ombro braço seu corpo apoiado na pia

esta caneca que você segura

a luz que vem da janela

deve ser manhã

ainda

este retângulo

nunca

este retângulo fotografia

contra matéria

O ar que seu corpo empurra

matéria que corre a sala

e se espatifa contra matéria

o piso a parede o teto

você dança