domingo, 21 de janeiro de 2007

Conheci alguns poemas de Benjamin Prado, poeta contemporâneo espanhol, traduzidos por Marília Garcia na revista Inimigo Rumor número 18, que saiu no meio do ano passado. Gostei muito e muito dos poemas, voltei a eles diversas vezes. E então passei alguns meses sem lê-los. Na semana passada, relendo coisas da revista, me surpreendi com o quanto "Olhando fotos de Anne Sexton (1928-1974)" me remeteu ao roteiro de "Areia", curta que vou dirigir em abril (e cuja primeira versão escrevi em 2003). Fiquei feliz. E descobri coisas novas sobre o roteiro. E a vontade de filmar só aumentou. . Olhando fotos de Anne Sexton (1928-1974) Na primeira foto, Anne Sexton olha o mar. Sabemos que é uma praia da Virgínia, Carolina do Norte, e que é o ano de 48, um dia de sua lua de mel. Tem os olhos semifechados, enquanto ouve o rumor das ondas, o vento que desfaz e volta a erguer as dunas, a água que se move com lentidão, que traça linhas, curvas, esferas. A água que se move como a mão de alguém que escreve a palavra oceano. Na segunda imagem – agora já estamos em mil novecentos e setenta e quatro –, fuma um cigarro perto de uma janela – por alguma razão creio que do outro lado do vidro há um bosque – e observa as figuras formadas pela fumaça: peixes, um iceberg, uma sereia, um anjo gravemente ferido na neve. Nesta foto tem um aspecto estranho, parecido ao de alguém que corre para um vulcão ou ao de alguém que acaba de largar uma faca. Poucos dias depois Anne Sexton vai se matar nesta mesma casa; vai deixar seus anéis sobre uma mesa, na cozinha, e em seguida entrará na garagem com um copo de vodka na mão, ligará o motor do carro – um Cougar vermelho – e o rádio – você imagina o que ela pôde ter ouvido? James Taylor? Grateful Dead? Pink Floyd? – e aguardará a morte. Fecho o livro Você me olha. Sei o que está pensando: - A vida é muito difícil. Uma mulher é um relógio de areia. (Benjamin Prado – tradução de Marília Garcia)

sábado, 13 de janeiro de 2007

Nha cretcheu, meu amor, O nosso encontro vai tornar a nossa vida mais bonita por mais trinta anos. Pela minha parte, volto mais novo e cheio de força. Eu gostava de te oferecer 100.000 cigarros, uma dúzia de vestidos daqueles mais modernos, um automóvel, uma casinha de lava que tu tanto querias, um ramalhete de flores de quatro tostões. Mas antes de todas as coisas bebe uma garrafa de vinho do bom, e pensa em mim. Aqui o trabalho nunca pára. Agora somos mais de cem. Anteontem, no meu aniversário foi altura de um longo pensamento para ti. A carta que te levaram chegou bem? Não tive resposta tua. Fico à espera. Todos os dias, todos os minutos, aprendo umas palavras novas, bonitas, só para nós dois. Mesmo assim à nossa medida, como um pijama de seda fina. Não queres? Só te posso chegar uma carta por mês. Ainda sempre nada da tua mão. Fica para a próxima. Às vezes tenho medo de construir essas paredes. Eu com a picareta e o cimento. E tu, com o teu silêncio. Uma vala tão funda que te empurra para um longo esquecimento. Até dói cá ver estas coisas mas que não queria ver. O teu cabelo tão lindo cai-me das mãos como erva seca. Às vezes perco as forças e julgo que vou esquecer-me. (Ventura e Pedro Costa, "com três ou quatro coisinhas de Robert Desnos", para o filme "Juventude em Marcha", de Pedro Costa) Das cartas censuradas 2 Talvez gostasses de me mandar abraços mas mudei de endereço e de vista da janela te escrevo então para dar notícias Moro agora perto do mar ou seja o mar, me dizem, é perto e quando o vento levanta as ondas sinto sal nos lábios e a concha da minha orelha é como concha marítima Lá do andar das minhas companheiras dá pra ver, me dizem, atrás das árvores do bosque uma faixa azulcinza poderia subir quando é permitido e conferir mas não quero Através dos outros sei que estás bem e fico contente e fico preocupada que cortaram, ouvi dizer, teu tempo /de passeio mas fecho os olhos e juntos andamos pelos campos como antes como tantas vezes e não te preocupes me abraçarás sob uma árvore viva e não te preocupes não choro quando abro os olhos e vejo muro o soldado armado Darlówek, campo de internamento março de 1982 (Anka Kowalska - tradução de Ana Cristina Cesar e Grazyna Drabik)

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

venha voando (para Angélica Freitas, outra vez) Voltei a comer bolinhos de polvo depois de quase um ano ou um ano inteiro não sei A chuva começou assim que me entregaram o prato de plástico com os bolinhos Eu os comi sob o toldo de pé no asfalto O gosto era bom o mesmo Em dezembro três semanas atrás encontrei no meio do mato uns morangos silvestres que eu costumava comer há quinze anos colhi um coloquei-o na boca senti o que me fizeram sentir as papilas gustativas um sabor que conheço e de que gosto ainda nenhum abismo de tempo hoje na chuva voltando para casa falei sozinho os bolinhos de polvo ainda são bons sinto sua falta