Conheci alguns poemas de Benjamin Prado, poeta contemporâneo espanhol, traduzidos por Marília Garcia na revista Inimigo Rumor número 18, que saiu no meio do ano passado. Gostei muito e muito dos poemas, voltei a eles diversas vezes. E então passei alguns meses sem lê-los. Na semana passada, relendo coisas da revista, me surpreendi com o quanto "Olhando fotos de Anne Sexton (1928-1974)" me remeteu ao roteiro de "Areia", curta que vou dirigir em abril (e cuja primeira versão escrevi em 2003). Fiquei feliz. E descobri coisas novas sobre o roteiro. E a vontade de filmar só aumentou.
.
Olhando fotos de Anne Sexton (1928-1974)
Na primeira foto, Anne Sexton olha o mar.
Sabemos que é uma praia da Virgínia,
Carolina do Norte, e que é o ano
de 48, um dia
de sua lua de mel.
Tem os olhos
semifechados, enquanto ouve o rumor
das ondas, o vento que desfaz
e volta a erguer as dunas,
a água que se move com lentidão,
que traça
linhas,
curvas,
esferas.
A água que se move como a mão
de alguém que escreve a palavra oceano.
Na segunda imagem
– agora já estamos em mil novecentos e
setenta e quatro –, fuma um cigarro
perto de uma janela – por alguma razão
creio que do outro lado do vidro há um bosque –
e observa as figuras
formadas pela fumaça: peixes,
um iceberg,
uma sereia,
um anjo
gravemente ferido na neve.
Nesta foto
tem um aspecto estranho,
parecido ao de alguém que corre para um vulcão
ou ao de alguém que acaba de largar uma faca.
Poucos
dias
depois
Anne Sexton vai se matar
nesta mesma casa;
vai deixar
seus anéis
sobre uma mesa, na cozinha,
e em seguida
entrará na garagem
com um copo
de vodka
na mão,
ligará o motor
do carro – um Cougar vermelho – e o rádio
– você imagina o que ela pôde ter ouvido? James Taylor?
Grateful Dead? Pink Floyd? –
e aguardará a morte.
Fecho o livro
Você me olha.
Sei o que está pensando:
- A vida é muito difícil.
Uma mulher é um relógio de areia.
(Benjamin Prado – tradução de Marília Garcia)
domingo, 21 de janeiro de 2007
sábado, 13 de janeiro de 2007
Nha cretcheu, meu amor,
O nosso encontro vai tornar a nossa vida mais bonita por mais trinta anos.
Pela minha parte, volto mais novo e cheio de força.
Eu gostava de te oferecer 100.000 cigarros, uma dúzia de vestidos daqueles mais modernos, um automóvel, uma casinha de lava que tu tanto querias, um ramalhete de flores de quatro tostões.
Mas antes de todas as coisas bebe uma garrafa de vinho do bom, e pensa em mim.
Aqui o trabalho nunca pára. Agora somos mais de cem.
Anteontem, no meu aniversário foi altura de um longo pensamento para ti.
A carta que te levaram chegou bem? Não tive resposta tua. Fico à espera.
Todos os dias, todos os minutos, aprendo umas palavras novas, bonitas, só para nós dois. Mesmo assim à nossa medida, como um pijama de seda fina. Não queres? Só te posso chegar uma carta por mês.
Ainda sempre nada da tua mão. Fica para a próxima. Às vezes tenho medo de construir essas paredes. Eu com a picareta e o cimento. E tu, com o teu silêncio.
Uma vala tão funda que te empurra para um longo esquecimento.
Até dói cá ver estas coisas mas que não queria ver.
O teu cabelo tão lindo cai-me das mãos como erva seca.
Às vezes perco as forças e julgo que vou esquecer-me.
(Ventura e Pedro Costa, "com três ou quatro coisinhas de Robert Desnos", para o filme "Juventude em Marcha", de Pedro Costa)
Das cartas censuradas 2
Talvez gostasses de me mandar abraços
mas mudei de endereço e de vista da janela
te escrevo então para dar notícias
Moro agora perto do mar
ou seja o mar, me dizem, é perto
e quando o vento levanta as ondas
sinto sal nos lábios
e a concha da minha orelha é como concha marítima
Lá do andar das minhas companheiras
dá pra ver, me dizem, atrás das árvores do bosque
uma faixa azulcinza
poderia subir quando é permitido
e conferir
mas não quero
Através dos outros
sei que estás bem
e fico contente
e fico preocupada que cortaram, ouvi dizer, teu tempo
/de passeio
mas fecho os olhos
e juntos
andamos pelos campos como antes como tantas vezes
e não te preocupes
me abraçarás sob uma árvore viva
e não te preocupes
não choro quando abro os olhos
e vejo muro
o soldado armado
Darlówek, campo de internamento
março de 1982
(Anka Kowalska - tradução de Ana Cristina Cesar e Grazyna Drabik)
segunda-feira, 8 de janeiro de 2007
venha voando
(para Angélica Freitas, outra vez)
Voltei a comer bolinhos de polvo
depois de quase um ano
ou um ano inteiro
não sei
A chuva começou
assim que me entregaram
o prato de plástico
com os bolinhos
Eu os comi sob o toldo
de pé
no asfalto
O gosto era bom
o mesmo
Em dezembro
três semanas atrás
encontrei
no meio do mato
uns morangos silvestres
que eu costumava comer há quinze anos
colhi um
coloquei-o na boca
senti
o que me fizeram sentir
as papilas gustativas
um sabor
que conheço
e de que gosto
ainda
nenhum abismo de tempo
hoje
na chuva
voltando para casa
falei sozinho
os bolinhos de polvo ainda são bons
sinto sua falta