quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O Senhor Ferdinand observa. Observa com olhos grandes, com olhos pequenos, com um só olho, olhando pela janela da casa, para o jardim. Ele usa uma meia amarela e outra branca. Alguma coisa estranha está a acontecer, pensa. Olha fixamente - sem ver - para as árvores, enquanto enrola o cabelo com o dedo.
O vento rodopia na relva. Príncipes de papel pairam pelo jardim. Eles agitam-se ao vento. Há qualquer coisa errada, pensa o Senhor Ferdinand, pela centésima vez nesse dia. De meias, vai até à cozinha. Não, ele não tem fome. É outra coisa.
Um sentimento de tristeza invadiu-o. Transparente. Como gelo. É um sentimento como se... Como se alguma coisa que costumasse estar ali tivesse desaparecido. Perdi alguma coisa, pensa o Senhor Ferdinand. É isso. Desapareceu.
(início de "O Senhor Ferdinand", de Agnes Guldemont, com ilustrações de Carll Cneut e tradução de Maria João Archer de Carvalho - livro comprado por acaso em Lisboa, em uma livraria que estava para fechar e por isso tinha todo o seu estoque em promoção)

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

You Said Something
(PJ Harvey) On a rooftop in Brooklyn One in the morning Watching the lights flash In Manhattan I see five bridges The Empire State Building And you said something That I've never forgotten We lean against railings Describing the colours And the smells of our homelands Acting like lovers How did we get here? To this point of living? I held my breath And you said something And I am doing nothing wrong Riding in your car Your radio playing We sing up to the eighth floor A rooftop, Manhattan One in the morning When you said something That I've never forgotten When you said something That was really important

domingo, 27 de dezembro de 2009

Chiado
(com algo de PJ Harvey)
Quando nos encontramos
minhas mãos já se haviam aquecido um pouco
ou eu já havia deixado de pensar nelas
e no frio
ou agora, três dias depois,
deixei de pensar nas mãos
ou esqueci
Estávamos na rua
estava frio
mas começo pelo frio
porque sei que as temperaturas andam baixas
e não porque comece por aí a imagem
(quando ela começa
já estamos sentados no café
sem casacos)
Não, a ausência dos casacos
tampouco se nota
nesta imagem que habita seu nome quando o digo:
você levanta o olhar até mim
há uma tristeza
um silêncio curto
você sorri e baixa um pouco a cabeça
(Logo antes você me disse algo importante
algo que agora é importante
ou três dias atrás
e isso não está na imagem
mas havia suas palavras entre os nossos dedos)
Você levanta o olhar até mim
e os olhos param
há uma tristeza
um silêncio
que começa a durar sem incômodo
você sorri e baixa um pouco a cabeça
(Logo depois voltamos a falar
e isso não está na imagem
mas havia casacos pousados sobre uma mesa
outras mesas
frio, rua e mãos)
(Lisboa, 21-25 de dezembro de 2009)
Há pequenas impressões finas como um cabelo e que, uma vez desfeitas na nossa mente, não sabemos aonde elas nos podem levar. Hibernam, por assim dizer, nalgum circuito da memória e um dia saltam para fora, como se acabassem de ser recebidas. Só que, por efeito desse período de gestação profunda, alimentada ao calor do sangue e das aquisições da experiência temperada de cálcio e de ferro e de nitratos, elas aparecem já no estado adulto e prontas a procriar. Porque as memórias procriam como se fossem pessoas vivas. Acreditem que sim e passamos ao capítulo seguinte. (Augustina Bessa-Luís, "Antes do degelo". Anotado em Lisboa, no dia 17/12/09.)

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

24 de janeiro de 1953. Sábado de manhã, e me dedico ao velho exercício de apanhar o tempo entre os dedos, conforme ele passa, sempre passa e foge. (...) Tenho me dedicado à leitura dos versos vigorosos e densos de Gerard Manley Hopkins novamente: "Como manter - há um modo qualquer, qualquer um, haveria um meio, nos lugares desconhecidos, algum laço ou broche ou trança ou nó, grampo, trinco ou tranca ou chave para conter/ a beleza, para impedi-la, beleza, beleza, beleza... de desvanecer?". Sim, obcecada, como sempre, com o esvair do tempo!

(Sylvia Plath)